sábado, 17 de setembro de 2011

APRENDEREMOS OUTROS SONHOS

Aprenderemos outros sonhos,
mesmo que nos custem
os pequenos guardados
de nossa pequena infância
(ou justamente em nome deles).
Outros sonhos.
Não os da solidão,
os de tom sépia
de nossas velhas memórias
que por muito mais
de mil e uma noites
nos aprisionam,
sempre relembrados
a cada manhã
como coisa já passada
no passado.
Outros sonhos.
De cores vivas
que nos desnudem, solidários,
saudados a cada manhã
como coisa do futuro
no presente.
Sonhos de boas lembranças
que estão por vir.
Por que não, afinal?
Porque não.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

ESSE TEU SILÊNCIO


Esse teu silêncio
não só de palavras
faz aflorar
verdades muito antigas.
Mais primeiramente
que a própria consciência,
tão pobre quanto prezada,
urna solidão originária
nos habita
e guia.
Como se a sombra
produzisse o corpo
ou o espelho a figura.
Mais nos amamos
e um calafrio
faz pressentir
sua presença dissimulada,
sólida e funda.
Tagarelamos,
pássaros ao crepúsculo,
e nos surpreendemos
distraídos,
reduzidas a vozes
os melhores verbos.
Lançamo-nos à rua,
na retidão da marcha
ou na pendência da dança
(em frente, que unidos venceremos!):
rebelamo-nos contra a solidão,
muito mais velha,
e miseravelmente
só agredimos a nós mesmos.
Fala e gesto inúteis,
somente nela
nos reencontramos
solidários.
(À luta, pois, companheira,
em nome desse nosso
mais íntimo destino).

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

CADA PALAVRA


Cada palavra
emergida da funda gravidade
de cada verso,
como canto de sereia
insinuante e fugidia,
ao dizê-la,
na inédita emoção
de cada vez,
sempre imaginamos poder domá-la,
desnudar-lhe a intimidade,
enredá-la em malha fina.
Mas na sua longa decifração
– dos tropeços do beabá
à invencível tentação
de entrever
entre véus
as dobras e saliências
do ser
ou as trevas do nada –
¬apenas tornamo-nos
seus dóceis escravos,
sempre prontos a servi-la;
Damos-lhe a voz
e mais do que no espelho
nela nos refletimos.
Presos à disciplina de férreas razões
ou à agitação do coração,
sob sua protetora tirania,
achamo-nos reais e verdadeiros
e por palavras,
mais do que por gestos,
deixamo-nos morrer.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

COMO A LUZ NOS CEGA

Como a luz nos cega
se por demais clara,
do mais fundo desespero
não há de germinar
palavra,
nem mesmo gemidos.
E dele só dizemos,
quando passada a hora mais pungente,
no intervalo breve em que a custo
o dispersamos.
Talvez por isso, amiga,
estes meus versos
vejam a luz
assim tão dificilmente.
E eu bem sei que
de seus instáveis sentidos
tenho extraído a sobrevivência.
Arduamente, por certo,
pois em silêncio,
quase sempre.
(Ressalvemos,
em todo caso,
para que, ao menos na aparência,
haja equilíbrio:
também na alegria,
se por demais radiosa,
emudecemos.
E admito: por vezes,
raras vezes, decerto,
ela nos assalta).

segunda-feira, 13 de junho de 2011

NO TEMPO DAS ÁGUAS, A CADA ANO

No tempo das águas, a cada ano,
medra o mato,
oculta roteiros,
apaga pegadas.
Caramujos medrosos, sempre
nos detemos,
o corpo teso,
sem sequer querer saber
se essas sendas
por sob a relva
não nos revelariam
rotas antiqüíssimas,
passos passados,
restos de rastros.

Erremos, senhora,
caramujos curiosos,
por entre as ervas,
a refazer voltas e revoltas.
Logo mais, outro mato
recobrirá nossos descaminhos,
apagará as falhas
e enterrará nosso segredo
de tudo (ou de nada) ter achado.

sábado, 14 de maio de 2011

COM BOAS FILOSOFIAS

Com boas filosofias,
reluzentes lantejoulas,
enfeitamos
nosso dia a dia
construído de pequenas e graves
rendições.
E nossas revoltas
sempre mais mesquinhas
talvez se anunciem apenas
na ligeira constrição
dos lábios. Se tanto.
Até o verbo rareia,
só resmungado
na voz passiva,
o coração vazio de surpresas.
Descobrimos
como coisa sabida,
conquanto oculta,
que morremos
de medo da morte
e trememos
ante o fado e o fato,
a aeronave e o patrão,
a paixão e a liberdade.
Compomos
nossa quotidiana boa conduta
até com ousada covardia.
E nem nos socorre
a lembrança de um Fausto
bom mercador,
pois a esta hora
já negociamos tudo:
a camisa, o sal, a rima,
a alma, o diabo-a-quatro.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O GESTO COMPETENTE

O gesto competente,
o olhar metódico,
inclinamo-nos
sobre nossas aflições
e julgamos descobrir
com incisiva argúcia
as secretas razões
desses pesares
e chagas mal curadas.
Mas já então
empreendemos
arriscada cirurgia
ou dedicamo-nos,
aplicados,
a inútil dissecação?

domingo, 13 de março de 2011

OLHOS POSTOS NO CÁLCULO

Olhos postos no cálculo
das horas e das coisas
trocamos pelo meio-dia
as noites claras
de sinais e chamamentos.
O sol nos tornou cegos
o bastante
e fez que
queimássemos os anjos
e os fantasmas,
todos velhos amigos
de antigas luzes.
Dignas corujas matinais
contamos as horas
para saltar na escuridão
de lençóis brancos,
os olhos cerrados,
assustados de tudo,
assestados em nada,
somente à cata da
manhã seguinte.
Desnaturados animais divinos,
sem memória e sem asas
já não sonhamos
nem mesmo em sonhos.