terça-feira, 21 de agosto de 2012

De uma rosa desfeita



De uma rosa desfeita,
espantado o vento, restou
estampada na rocha lisa
uma única pétala.
Grito vermelho
na mudez do granito.
Caprichoso invento
do tempo
a atiçar
o desejo de
no carnudo contorno
achar o desenho
de certa boca
 doces petalábios –,
a avivar na memória
o sabor
do primeiro beijo,
já longe,
hoje,
o doce alento
adolescente
que o inspirou.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Aferramo-nos ciosamente

Aferramo-nos ciosamente
Às nossas mais pequenas lembranças
e urdimos nosso presente
desastradamente.
Como uma vez te disse,
não vivemos.
Já duplamente não vivemos
ao descobrirmos
que essas pequenas lembranças de nós mesmos
são apenas ordinários fragmentos
dessa trajetória maior,
feita universal,
sutilmente tecida
de mitos e compromissos
mal e mal suspeitados,
recolhidos nos tratados
mil vezes manuseados,
nas ditas verdades dos velhos filósofos,
nas teorias de solertes cientistas,
nas edificantes bíblias
de todas as religiões.
Lentamente matamo-nos,
aranhas suicidas,
enredados na própria teia.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

NÃO AO CREPÚSCULO



Não ao crepúsculo,
em meio às sombrias incertezas do Ocidente,
mas pela manhã,
o sol achando a relva úmida e certa,
aquele noturno tocado ao longe
tinha mesmo de trazer
lembranças
(que já nem sei
se de cenas reais),
dos tempos em que imaginava
devessem os nomes
ajustar-se às coisas.
Naqueles poucos minutos
de emoção quase esquecida
sobreveio,
amiga,
vôo raso de ave cega,
a sensação enovelada,
quase alegre,
de que ainda esperam por nós
nossos mais bem acalentados projetos,
quase mortal,
de que já não há retorno possível.
Puída banalidade,
por certo mais antiga
que o reconhecimento de nós mesmos.
(Tudo por causa de um pianista insone
e um noturno extemporâneo.
Golpe sujo na manhã azulada).

sábado, 21 de abril de 2012

COMO PÁSSAROS

Como pássaros
surpreendidos nos olhos
por súbito facho,
variáveis na cor de cada hora,
no humor de cada lembrança,
tentam o vôo
mil e tantos sentimentos
sem que a voz os prenda
ou liberte.
Uma angústia feita igual,
­funda na sua dolorosa imprecisão,
ou a leveza de asa
de alguma alegria difusa feita igual
disfarçam matizes,
desmancham perfis
lançadas no rigor simétrico
de ásperos extremos.
E na lavra imperfeita de nossa fala
equivocamo-nos.
Fazemo-nos radicalmente
santos ou pecadores;
noviços intolerantes,
só descortinamos
o céu e o inferno.
Não há clareira nem nomes
para nossas mediterrâneas sensações
e só distinguimos
toscamente
a loucura da razão
o riso do choro
a dor do prazer
a verdade da mentira
o amor do desespero
o silêncio da palavra
o coração do cérebro
a prisão da liberdade
a flor do punhal
a paz da guerra
e na rudeza
de uma cartilha pitecantrópica
combinamos
prisão com amor
liberdade com cérebro
punhal com guerra
silêncio com paz
loucura com prazer
verdade com palavra...
Pré-historicamente.

sábado, 24 de março de 2012

AOS SONHOS DE NOITES ALHEIAS



Aos sonhos de noites alheias
mesclamos
reminiscências
de vilas jamais visitadas,
colamos símbolos
de rituais esquecidos de seu sentido
e arrematamos,
as mãos inábeis,
a razão dispersa,
o pano de fundo
do teatro mambembe.
Os bancos vazios
por assistência,
quase dignos
no alinhamento forçado
de sua congênita desconjuntura,
fazemo-nos
— mágica transfiguração —
intérpretes de nós mesmos.
Na impostação da fala
e na largueza do gesto
imaginamos
proferir e abraçar
as verdades todas.
Mas súbito
olhar no olhar
descobrimos
que não nos queria o roteiro
meros intérpretes
e sim nós mesmos,
na inteira autenticidade
de cada uma de nossas maneiras
longamente ensaiadas
e com zelo interpretadas.
Súbito,
e ainda que por instantes,
reconhecemos
que mais não somos que
fantoches
de cordões rompidos,
sem umbigo e
sem asas.
Apenas flutuamos
no encantamento da palavra.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

POR TRÁS DESTES MEUS OLHOS

Por trás destes meus olhos
até mesmo amáveis, que,
por vezes, te sorriem,
dos lábios dispostos
ao verbo solidário,
das boas maneiras
laboriosamente ensaiadas,
quase não acho mais
coisa como sentimento.
Só bem construídas razões,
sóbria arquitetura
de geométrica frieza,
anteparo bem cimentado
às penas mais diversas,
das de dentro e de fora,
das de grande e menor monta.
Paciente discípulo,
nestes anos todos
exercitei as mil maneiras
de subtrair-me à dor.
Descobri,
conquista recente,
que já nem mesmo
lágrimas reservo
para as lembranças mais queridas,
dos pais mortos,
dos companheiros idos,
das lutas inacabadas
sequer perdidas.
E do longo aprendizado
tenho extraído imóvel indiferença,
quase serenidade (conquanto covarde).
Para as mais agudas penas,
próprias ou alheias,
sempre ofereço,
na gentileza da fala e do afago,
as mais graves e convincentes razões.
No entanto,
nesta madrugada silenciosa,
toca-me finíssima nostalgia,
das do tipo de fazer
a língua oca.
(Enfim, uma sensação.
Talvez do tempo em que,
eu criança,
as palavras,
mais que sentido,
tinham sentimento
e sabor adocicado).

MEDIMOS

Medimos
um a um
nossos passos,
o rigor do cálculo
a reger
o fôlego e a fadiga,
os pés
sempre prudentes,
as mãos
a apalpar os medos,
a poupar o coração
de sobressaltos.

Contamos
nossos passos,
já sem mesmo perguntar
para que canto caminhamos
e de que amos
queremo-nos vassalos.