sábado, 30 de outubro de 2010

QUE MÁGICA ANTIGA

Que mágica antiga
de sábios tagarelas
nos fez cavar tamanho abismo
entre os olhos cientes e as mãos
abertas em ajuda
ou crispadas em ataque?
Como defesa,
os braços em cruz
buscam a cumplicidade
de todos os sentidos,
a visão turva,
acomodada à miséria,
os ouvidos tão longe
dos mais próximos lamentos...
O pensamento não faz mais
que refletir-se,
espelho quebrado em mil cacos,
e a dialética toda
se cristaliza
em versos e razões.
Versos e razões,
bibelôs reluzentes,
sempre frágeis demais
para levá-los às ruas,
ao encontro de gentes e bandeiras.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Antes que a fala

Antes que a fala,
o silêncio mais antigo
há de reger
as mãos ainda dispostas
a achar a suavidade da pele,
a intimidade do corpo,
num amor feito destino,
a acariciar os cabelos macios
das crianças,
o rosto enrugado
dos velhos.
Ainda com muda disciplina,
nossos braços, como correntes,
talvez imobilizem tiranos
de variados pendores.
Aprenderemos a reencontrar,
empolgado o coração,
os cantares quase esquecidos,
a algazarra das crianças,
as juras — sempre verdadeiras — dos amantes.
Só então falemos
de liberdade,
não como coisa presumida,
mas como verdade recém-chegada.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

INDIFERENÇA OU TERROR?

Indiferença ou terror?
Que sentimento abrigar
quando, súbito, nos ocorre a lembrança
de que nossos melhores sentimentos,
os que queremos mais íntimos e calados,
não são mais que trejeitos e maneiras
aprendidos de autorizados mestres,
como se desde sempre universais?
Filhotes avulsos de metafísicos ventríloquos,
sentimos o que querem que sintamos,
das dores às alegrias,
da esperança ao desespero.
Sempre nos iludimos. E já agora
também iludimos.
Por isso, senhora, confesso:
quase nada sinto,
que não são propriamente meus os sentimentos.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

FLORES E FRASES

Flores e frases,
como tudo, fenecem
e em cada fim e recomeço
faz-se o silêncio,
mais fundo e radical,
acontecimento desde sempre
muito mais antigo,
a cada vez novo.
Muito mais antigo,
a cada vez novo,
como o solo,
ventre profundo e velado,
mais que suporte,
fundamento.
Mais que fundamento,
infindável princípio.

Ocorre, contudo,
que erramos sobre a terra,
radiantes os olhos
na algazarra das cores,
dóceis prisioneiros
do encanto das palavras.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

HÁ TARDES

Há tardes,
como esta,
em que a algazarra dos pássaros
não desarranja
o silêncio que se estende
de dentro de nós
aos móveis imóveis,
ancorados na penumbra
da hora cadente.
Hora de estranheza
em que jovens fantasmas,
velhos conhecidos,
se aninham
nas poltronas gastas,
dispostos a repassar,
cena por cena,
as fantasias de outrora.
Vaga hora
de pungente melancolia,
nítida a súbita descoberta
de que já são outras
as fantasias,
o sorriso e a fala desses
velhos jovens
rostos de companheiros
nunca mais revistos.
Não, não são horas
de saudade
e, por isso,
de agonia...
São horas
de aviso.
A me fazer lembrar
que estão por vir
outras tantas tardes
povoadas de fantasmas
sempre jovens
e mais velhos
a contar histórias
que já não saberei
se em alguma hora
foram reais.
Como esta.